Um momento decisivo na minha apreciação da arte foi quando tive a oportunidade de ir, pela primeira vez, à Sala Minas Gerais. Localizada numa região tradicional da minha terra, Belo Horizonte, sabia pouco de sua existência. Meu precário conhecimento de música clássica se resumia a até alguns bons fatos, como o de ter uma coleção básica de vinis antigos, onde Herbert von Karajan regia a Orquestra Filarmônica de Berlin para a execução das sinfonias de Ludwig von Beethoven, dois discos de obras de Rossini e uma preferência permanente, outros dois de sinfonias de Dvorak.
Ter contato com a instalação foi hipnotizante. O transe foi adiante quando, estatelado, vi Augustin Hadelich tocar no Concerto para violino de Dimitri Shostakovich, com uma “canja” arrasadora de Paganini. Não consegui me levantar da cadeira com facilidade, o volante foi entregue à esposa para o retorno à casa. Diga-se, aconteceu outras vezes em outras obras, mas não é esse o tema.
Tinha de ouvir aquela música novamente, aquele solista, aquela orquestra. E, dentre as surpresas e provocações advindas da imensidão da produção artística, eis que me deparo novamente com a persona do Maestro. Nosso diretor artístico, Fábio Mechetti, profissional de reconhecimento mundial, foi o responsável naquela noite. Ao ouvir execuções da obra de Shostakovich – impossível de absorver algo significativo em uma atuação, mesmo que magnífica como foi – me deparei com uma nova constatação: Em alguns casos, orquestra e/ou solistas mudavam o “andamento” (os músicos me perdoem, sim? O desconhecimento é fundamental para o desenvolvimento destes meus textos, sou só um espectador mesmo).
Em um, era mais rápido, no outro, maior vigor. Notei ainda maior relevância ao que poderia ser vulgarmente chamado de “base das cordas”. Então? Não tínhamos um contrato, uma pauta, uma partitura? Cada um pode colocar seu “tempero” e decidir interpretar? Sim, interpretar! E aí, mais um fato relevante sobre o maestro: ele “toca” a orquestra. Sua interpretação pode ocasionar reproduções distintas, dentro de sua concepção artística, sendo um dos muitos aspectos desta imensa atividade, que ainda hoje busco compreender em maior extensão.
Trago esta anotação ao leitor pois é fruto da observação que pretendo nos meus escritos: notar como a arte evoca princípios que podem ser benéficos compreendidos à luz da gestão, reforçando conceitos, alinhando perspectivas e dinâmicas, preparando mais o executivo, gestor e líder para a sua “interpretação das obras”, a execução.
No intuito de aumentar minha percepção, li autonomamente mais um pouco e fui religar o toca-discos (para os que não conhecem o termo, recomendo verificar vídeos que documentam o uso desta relíquia…) e escutar os vinis. E ainda comparar as interpretações.
Numa das andanças me deparo com duas execuções de uma obra notável: A quarta sinfonia de Robert Schumann. Obra belíssima, com intensidade de ritmo, vibrante e vigorosa. A mim, capta a atenção de imediato, o engajamento é total. Mas, interessante foi notar três execuções de grandes maestros na condução desta obra: Sergiu Celibidache, Leonard Bernstein e Herbert von Karajan.
Temeroso de definitivamente perder a confiança de meus leitores que são intérpretes, musicistas, me arrisco na simplicidade de afirmar que uma condução é reflexiva, lenta e pausada. A outra é “pauleira”, com ritmo vigoroso e muito forte. A outra é “bordada”, há alguns sons que não se percebem tão bem nas demais. Não citarei os maestros que aprecio, pois aí seria definitiva a situação de meus amigos da música me abandonarem, ainda mais que me refiro a audições computadorizadas, via mídias como streaming.
De minha parte, faço a consideração: a obra, a autoria, a criação é a mesma. A execução, dada que é entregue aos artistas, em especial ao maestro, no encargo da condução dos músicos (fato que culmina após todo o relacionamento regente – orquestra, ensaios, preparos, estudos, coordenação geral entre naipes, etc.) varia, é pertinente aos contextos dos gestores temporais, dos líderes que se expõe com destaque às plateias, muitas vezes exigentes e conhecedoras das obras. Um desvio, uma ocorrência de audácia, uma interpretação particular pode gerar tanto admiração quanto crítica negativa. A cobrança surge no momento da entrega, da execução da obra.
Há insights evidentes para o ambiente de negócios: os planos, desenhados por vezes em ambientes herméticos, repletos de dados, auxiliados por métodos modernos de analíticos e big data, além do machine learning evocando a inteligência artificial, seria totalmente alinhado à execução ou há possibilidade de “interpretação”? Qual a atribuição do executor, do CEO e dos seus associados nos “naipes”? A execução pode chegar a revisar fundamentalmente o plano, não essencialmente o modificando, mas impondo outro ritmo, vigor, humanidade, relevância à base e, enfim, no relacionamento com os clientes e stakeholders?
Novamente a Arte nos encaminha uma reflexão interessante, observando este fato tão usual da música orquestral: a perspectiva de conduzir a execução da obra com ensejos próprios, inovando, modificando e traduzindo a mensagem prevista da forma que o maestro – líder, gestor – considera, realizando a oferta final para os espectadores – clientes, usuários, cidadãos.
O porte das mudanças numa execução poderá variar segundo fatores internos, como o relacionamento do líder com os grupos, dos grupos entre si, da afeição pela obra constante em um programa, de uma ou outra habilidade existente (por exemplo, há um solista fluente naquela peça específica) na orquestra em si. Também por fatores externos, como a situação de momento no local da execução da obra, tanto em termos do ambiente físico – estrutura da sala, acústica, ventilação, ruídos extras, proximidade dos ouvintes – uso de tecnologias adicionais, como as de reprodução digital e, claro, da plateia. Aqui, casos extremos podem ser citados, como de governantes de países em situação de guerra ou intervenção política que foram assistir à execução de uma peça e não pouparam críticas aos músicos, ao maestro e ao compositor. Os constrangimentos sofridos por Dimitri Shostakovich durante o regime da extinta União Soviética são retratos destes fatos.
Os tempos de plano, de projeto, de obra, são marcas que auxiliam na visão de futuro, que determinam uma entrega prevista dentro de limites de variabilidade e da gestão de riscos. O plano, assim como uma composição, prescreve caminhos e objetivos a serem alcançados, com nível de detalhamento que especificam até mesmo como um instrumento deve ser empunhado pelos músicos. O tempo ali serve para o controle geral dos autores, dos executivos, para compreensão das sequências e dinâmicas de processos que levarão ao objetivo final.
Haveria condições para a interpretação? Para que o líder executor, o maestro, imprima suas percepções, analisando fatos internos, externos e de fundamento, como sua interpretação das condições de mensagem do compositor? E, no relacionamento com os liderados, como esta interpretação seria avaliada? Iriam seguir com a orientação local ou insistir num padrão básico, único e definido rigidamente? Não seria este um ponto importante para a tão desejada agilidade organizacional (adaptabilidade)?
O testemunho da audição nos remete ao fato que, na execução orquestral, a convivência de tempos diferentes existe: um no plano, outro na execução.
Você avalia que isso seria possível, recomendável e desejável?
Fica o desafio sugerido em proposição pela Arte.
Ao leitor:
Nossa proposta, nesta coluna, não é ensinar ou promover a crítica de Arte, em geral. É de provocar a reflexão sobre temas da gestão, como inovação, estratégia, marketing, transformação digital, entre outros, motivado por reflexões a partir da Arte.
Artigo escrito por George Leal Jamil. Ele é professor e consultor em temas de educação executiva. Engenheiro, MsC em Computação, Dr. em Ciência da Informação, pós-doutorados em Inteligência de Mercado e Empreendedorismo. Autor e editor de livros no Brasil e exterior. Colunista da plataforma Inovativos.