Um recente levantamento feito pelo Banco Mundial, divulgado em setembro deste ano, apontou o Brasil como uma das nações mais importante do mundo quando o assunto é o chamado governo digital, ou seja, a oferta de serviços que evitem filas e a burocracia que o brasileiro conhece muito bem.
O ranking, chamado de GovTech Maturity Index 2020, avaliou a transformação digital do serviço público em 198 países e posicionou o Brasil na sétima colocação, inclusive a frente de nações como EUA e Noruega. O trunfo, segundo avaliação do Ministério da Economia, foi a criação da plataforma Gov.br, que entrega serviços digitais.
De fato, a plataforma foi um sucesso: já existem mais 115 milhões de usuários em 2021, sendo que há dois anos esse número sequer foi de 2 milhões de pessoas.
No entanto, será que visão otimista do ranking se reflete na vida prática do brasileiro? Será que todos os serviços são realmente digitais ou ainda processos exaustivamente analógicos?
Tudo depende
Na avaliação de especialistas no tema – e que participaram do evento Innovation Experience Conference 2021 – a análise sobre a construção de um governo digital precisa ser analisada sobre alguns aspectos importantes. Um deles é a criação pura e simples de um serviço pelo canal digital, o que de fato aconteceu. O outro é a cultura data-driven, que analisa cada etapa da jornada digital e ainda utiliza dados para a formulação de políticas públicas baseada em evidências.
“De fato, ocupamos o sétimo lugar no mundo no ecossistema de dados abertos para a inovação, empreendedorismo e atração de investimentos “
“O ranking do Banco Mundial colocou o Brasil em sétimo lugar, inclusive na frente de países como Noruega e os EUA em relação a digitalização e Gov.Tech. Mas eu me pergunto se esse ranking reflete a nossa realidade”, questiona Beatriz Nóbrega, secretária executiva da Frente Parlamentar pelo Livre Mercado.
Jacqueline Jianoti, Legal, Compliance e Relações Institucionais na Contabilizei, entende que o estudo contempla três pilares importantes, sendo que o Brasil efetivamente preencheu dois deles. Falta ainda o mais importante.
“Eu vejo uma evolução. Há uma primeira etapa que é de digitalização pontual. A segunda é a oferta de serviços digitais, o que também alcançamos. Por fim, há uma terceira que é pensar de forma digital, ou seja, o governo ser realmente digital. Eu entendo que o País não está na etapa de governo digital”.
“Um e-Gov olha o processo como um todo, inclusive todos os participantes da cadeia de serviços e que podem ser digitalizados”
Padrões internacionais e processos
Jacqueline cita como exemplo de processo burocrático (infelizmente) phygital a abertura de empresas. Outro estudo do Banco Mundial, o Doing Business, destaca que o Brasil está no rol de países cuja abertura de empresa pode ser feita em até 24 horas. No entanto, essa realidade corresponde a última etapa do processo digital, segundo ela.
“Hoje, por exemplo, eu consigo abrir uma empresa em 24 horas, mas passo dias preparando os outros dados e entregando tudo muito redondinho para a junta comercial”, disse.
Em outras palavras, dentro de serviços digitais, o brasileiro ainda percorre o velho martírio da fila ou precisa aguardar dias ou até semanas para obter um documento que será usado para abrir a empresa – etapa final que ocorre em 24 horas.
“Estamos em um momento de fomentar uma nova discussão dentro da ideia de um governo digital. O poder público não pode olhar apenas para o cidadão. Ele precisa enxergar para as formas que promovam o acesso e as oportunidades de geração de emprego e renda”
Precisamos padronizar sistemas e até obedecer a padrões internacionais para que possamos concatenar servidores daqui e de fora. Isso tudo passa por um processo de pensar o governo digital não apenas como atendimento digital ao público final, mas também como uma política de longo prazo para desenvolvimento do estado”, explica Anna Beatriz Lima, Head of Public Policy na Quicko.
Entendo os dados
Na avaliação de especialistas, a cultura data-driven e a análise dos processos possuem desafios importantes pela frente. Uma delas é a própria capacidade do poder público em absorver e aplicar as novidades tecnológicas.
Há ainda questões ainda mais basilares. O estado ainda não possui uma base de informações considerada confiável e organizada. Entre outras coisas, isso poderia gerar políticas públicas mais assertivas para à população.
“Precisamos trazer para esse ranking (do Banco Mundial) outros elementos tão ou mais importantes, tais como como a acessibilidade. A qualidade do dado no Brasil é acessível, utilizável e as pessoas conseguem se apropriar e transformar o dado em produto e inovação, em algo que consiga ser utilizado? O segundo ponto é será que conseguiremos desenvolver novos mercados tendo os dados como insumo?”, questiona Beatriz.
LGPD
Há ainda uma visão equivocada da sociedade, inclusive do poder público, sobre o verdadeiro objetivo da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). A norma não surgiu para limitar o uso de informações, mas validar o tratamento de informações a partir de critérios e regras mínimas.
Essa visão distorcida também funciona como uma barreira para a cultura data-driven. “Sempre é bom lembrar que a gente precisa devolver o controle dos dados para o seu dono. Precisamos de uma padronização muito forte no sentido de definir claramente o que são dados públicos e privados. A LGPD é importante nesse sentido. É uma norma que protege as pessoas”, explica Yasodara Córdova, Privacy Researcher na Único.
“O ideal é que tenhamos uma maneira de informar essas pessoas que os dados delas estão sendo utilizadas para determinados fins”
De acordo com Gabriel Zanette, CEO na LiberFly, a aprovação da LGPD foi importante sobre os mais diferentes aspectos. Um deles foi o fomento ao debate no mundo corporativo sobre os tipos de dados e como usá-los.
“Com a LGPD, nós passamos a debater dentro da empresa se algumas informações eram ou não classificadas como dados sensíveis. Então, eu penso que está ocorrendo um aprendizado na prática sobre os tipos de informações, como devemos usá-los e para onde iremos”
Segurança cibernética
Outro desafio importante para o poder público é a preocupação com a segurança cibernética, justamente um tema que tem desafiado o Brasil e outros países ao redor do mundo – mesmo aqueles com uma sólida cultura data-driven.
De acordo um estudo conduzido pela Trend Micro, a maioria dos ataques no Brasil este ano se concentrou em prejudicar entidades ligadas ao governo (35,3%). Em seguida, os principais alvos foram o setor de manufatura (9,7%) e da saúde (9,2%) em uma tendência que destoou um pouco dos números globais.
“Penso que a cibersegurança deve ser a base de tudo. Precisamos entender como isso pode prejudicar a empresa e as pessoas de uma maneira geral”, afirma Zanette.
Yasodara explica que o tema da segurança cibernética e faz parte da formação do ranking do Banco Mundial. “A economia dos dados não resiste sem uma cibersegurança robusta. Em um mercado complexo como o brasileiro, esse é um assunto que precisa ser debatido, pois ele está diretamente relacionado à privacidade’, disse Zanette.
É hora de iniciarmos esse debate o mais rápido possível. Mais do que oferecer serviços digitais, o desenvolvimento de uma cultura digital no poder público está inserido na seara de outras políticas e envolve até mesmo a segurança nacional – um tema que interessa ao atual governo.
Assista à apresentação na íntegra abaixo:
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