A fintechzação já se mostrava tendência, não só entre os marketplaces que vinham buscando interoperabilidade, antes da pandemia se instalar. Mas como avaliar o atual fenômeno e as oportunidades que representa em diversos setores da economia em tempo de isolamento social? O mundo dos negócios teve que se render ao movimento inesperado de fechar as portas para tentar conter o prolongamento da crise sanitária. Apenas atividades consideradas essenciais seguiram funcionando. Enquanto o quadro estático de recessão sem precedentes na história recente é pintado com cores dramáticas, uma natureza aberta, dinâmica e colaborativa pincela novas cores sobre a forma como o mercado financeiro opera, com mais transparência e competitividade, impactando diretamente bancos, fintechs e negócios relacionados; o open banking.
Para compartilhar visões de mercado e informações sobre ações relacionadas a essas transformações em ambientes diversos, o Instituto Startups reuniu um qualificado grupo de executivos de organizações de grande porte e empresa nativa digital para debater o tema “fintechzação multissetorial – segmentos diversos encontram nos serviços financeiros oportunidades para inovar na experiência do cliente”. Na abertura, o anfitrião do encontro virtual, Marcos Carvalho, falou sobre os dois chapéus organizacionais que representa: “A Associação Brasileira Online to Offline (ABO2O) é uma entidade setorial que reúne mais de noventa empresas com DNA tech e atua como um hub que fomenta a economia digital em três pilares; marketplaces e plataformas que conectam usuário, consumidor a um produto ou serviço. O segundo pilar, super representativo, é o de Fintechs e Meios de Pagamento e apoiando o tripé, Fundos de Investimentos. O outro chapéu é o Instituto Startups; plataforma de conteúdo focada em Inovação Aberta, que encabeça debates como esse, explicou o executivo”.
Super novidades, grandes mudanças
Carvalho abriu o debate com uma detalhada contextualização histórica. Remontou acontecimentos que modificaram a vida em sociedade, trouxeram o consumidor final para o protagonismo das relações mercadológicas por meio de mudanças na forma de consumir e transacionar; desde o surgimento da Internet no contexto bélico (em 1969) e a sua popularização entre usuários domésticos (quase 25 anos depois), situando a criação da primeira fintech em 1998 (PayPal, carteira digital para pagamentos online), e à formação da“bolha.com” na virada do milênio (movimento especulativo se forma conforme o comércio eletrônico ganha tração), pontuando a inteligência e mobilidade permitida através da polarização dos smartphones a partir de 2007 (que marcou o início do conceito O2O – Online to Offline ao integrar o mundo físico com o digital), até a entrada do Uber no Brasil (em 2014) utilizando o conceito Bank as a Platform (BaaP).
Em 2015, o setor, até então altamente regulado e fechado com uma concentração de grandes instituições financeiras dominando o market share, passou a contar com a regulação do Banco Central (Bacen), que favoreceu a competitividade com maturidade. “De lá para cá, esse mercado cresceu muito. Somente no Brasil, em 2020, há mais de 700 fintechs. Inúmeras empresas que atuam em setores diversos da economia estudam como levar mais facilidades para o consumidor final e fidelizá-los. Movimentos como o dos Super Apps (que integram diversos serviços, incluindo transacionais, em único aplicativo, a exemplo do mundialmente popular WeChat (literalmente, um negócio da China) e outros que observamos no mercado estão em ascensão. Dessa perspectiva lanço a pergunta inicial e convido os participantes a contarem sobre suas respectivas atuações nas organizações que representam; Grupo Mongeral Aegon (com quase 200 anos de existência), o Grupo Cosan (fundado em 1936) e a GetNinjas, nascida em berço digital no ano 2011”, conduz Carvalho.
Como manter empresas centenárias relevantes no decorrer de intensas transformações no mercado ?
A convidada Taís Alvim foi a primeira a responder pegando o gancho da pergunta que considerou pertinente para enaltecer a cultura inovadora dentro de um grupo de grande porte com quase um século de atuação: “sou CCO da Payly; a primeira fintech do Grupo Cosan; criada em 2018, resultado desse movimento mercadológico transformador. A Cosan, apesar de quase centenária, tem uma forma muito ágil de identificar oportunidades de negócios. Inovação e empreendedorismo são duas características presentes na trajetória do grupo. Além de veloz na busca de oportunidades, o grupo possui um nível sênior de executivos empoderados e ágeis. A empresa tem uma fórmula específica para gerar negócios. A Cosan não faz inovação pela inovação; as iniciativas fazem sentido para o nosso ecossistema, nossos parceiros, clientes e fornecedores”, diz a executiva.
Para Marcos Diniz, diretor Executivo da fintech MAG Finanças, uma das seis empresas (criada em janeiro de 2020) que compõem o Grupo Mongeral Aegon, fundado há época da Brasil Imperial, não há dúvida: “acreditamos que se manter relevante ao longo do tempo se deve à capacidade de transformação que a empresa tem. A Mongeral foi a primeira iniciativa de previdência do País. Em quase 185 anos de existência, a empresa seguiu moderna e atenta aos novos modelos de mercado e à inovação”, conta.
“Em 2014, o grupo Mongeral Aegon recebeu um prêmio importante do mercado de seguros por seu projeto de estratégia digital; um novo modelo de distribuição. Estamos em 2020 e há seis anos nossa plataforma de venda é digitalizada Podemos dizer que hoje somos uma empresa 100% digital. Em uma semana de quarentena, nossos 1300 funcionários operavam home office“, complementa Diniz. Curioso lembrar que o período regencial foi um momento muito conturbado historicamente, de muitas incertezas políticas; não havia um consenso sobre o melhor caminho para governar o País. O tempo é testemunha de que corporações capazes de se reinventar e inovar, estão aptas a reverter períodos de crise, como o momento atual de pandemia, em novas oportunidades.
Crise e oportunidade, as duas faces da fintechzação e a digitalização imposta
O novo sempre vem, mas nem todas as empresas encaram o desafio de mudar. “Grandes companhias como Blockbuster, Kodak, Nokia, que tinham forte penetração no mercado, não conseguiram acompanhar as mudanças; foram engolidas. O mercado não perdoa”, comenta Carvalho antes de passar a palavra à convidada Sandya Coelho, diretora de Novos Negócios e Comunicação da nativa digital que é hoje a maior plataforma para contratação de serviços no Brasil e na América Latina. “A GetNinjas tem hoje mais de um milhão e 500 mil profissionais cadastrados. Geramos cerca de 300 mil solicitações por mês de 500 tipos de serviços (que vão desde serviços de reforma para casa, moda, beleza a eventos). No momento de pandemia, muitos desses serviços foram impactados. Apesar de sermos uma companhia nativa digital, uma parte do nosso produto acontece no mundo offline, na prestação de serviço presencial. Diante do desafio, tivemos que agir rápido. Nas primeiras semanas de março entendemos que era preciso remodelar o negócio para seguirmos efetivos nesse momento, explica Sandya.
“Lançamos uma opção de serviço remoto para pequenos reparos destinado às pessoas isoladas em casa que não se sentem seguras com a visita presencial de um prestador de serviço nesse momento, mas precisam de auxílio. Por meio de uma videochamada o cliente recebe orientações do prestador de serviços à distância e executa o reparo sozinho no local. Também passamos a oferecer teletriagem; um serviço de medicina. Temos a plataforma pronta, por que não atender essa necessidade que a sociedade tem nessa situação de pandemia? Facilitamos o encontro de pessoas que precisam de avaliação médica para identificar sintomas iniciais de Covid-19 e, dessa forma, o serviço desafoga o atendimento nos hospitais”, complementa Sandya Coelho.
“Por incrível que pareça estamos cumprindo 100% das metas. Em março, quando a quarentena começou, fizemos a maior arrecadação da história da MAG Seguros. No início, havia uma atmosfera de incerteza, mas o resultado do período surpreendeu. As pessoas passaram a se preocupar mais com a sua vida. Estão mais abertas a ouvir sobre seguro. O corretor que antes fazia duas ou três visitas presenciais diárias para efetuar uma venda consultiva realiza agora cerca de dez videoconferências em um dia”, revela Diniz.
Para Taís Alvim, “essa transformação digital do dinheiro permite um poder de compra mais fluído às classes C e D. No caso do grupo Cosan, o ecossistema é muito grande. Isso nos dá capacidade de olhar o que mais podemos fazer para facilitar a jornada do consumidor. Em tempos de Covid-19, estruturamos uma operação rápida de pagamento touchless nas lojas de conveniência. Nosso app Shell Box permite que o cliente pague o combustível sem sair do carro e sem tocar objetos manuseados por outras pessoas nos postos. Grandes empresas que queiram sobreviver devem ir além de trazer receita financeira; também levar experiência diferenciada ao cliente. Quando os grupos econômicos têm consciência do seu papel na sociedade não só nos momentos de crise, mas, principalmente, vemos o impacto positivo gerado no poder de marca”, conclui.
Mantra profético da nova onda de Fintechs: “Banking is necessary, banks are not”
Carvalho cita a frase (mais atual do que nunca) do filantropo bilionário norte-amercicano Bill Gates, dita em 1994 (antes mesmo de a internet se tornar realidade para o usuário doméstico em países como o Brasil). O debate mostrou que, independentemente do porte, as empresas buscam a desintermediação financeira e lucrar com ela, além de agregar valor à jornada dos clientes. “No caso da Cosan começou pela oportunidade de reduzir custos financeiros do grupo com aproximadamente 120 bilhões de faturamento. Ter uma fintech e esse dinheiro digitalizado já representava um benefício em termos de simplificação e otimização de taxas bancárias” conta Alvim. A Cosan deve trazer massa crítica ao negócio batizado com o nome que associa os termos em inglês “pay” e “daily”, por meio de seu relacionamento com clientes e fornecedores. Atende mais de 20 milhões de clientes diariamente pelas empresas do conglomerado: os postos Shell (nos quais a Cosan é sócia por meio da Raízen), a Comgás, a Rumo e a Moove (de lubrificantes). Para fincar sua bandeira no mundo fintech, ao lado de nativas tech o grupo Cosan se associou ao Manzat, do empresário Ernesto Corrêa Filho (fundador da GetNet), que também é dono do Banco Topázio, financeira que dará retaguarda à Payly, da qual detém 25%. “Hoje a Payly oferta uma linha B2B e outra B2C. Para consumidor ofertamos nas linhas das wallets; pagamentos nos estabelecimentos com QR Code, pagamentos de contas, transferências instantâneas, que agora o PIX (marca do novo meio eletrônico de pagamento instantâneo no Brasil) vem para fazer a mesma coisa e a gente chama de P2P. Para o B2B, um portal de gestão financeira, que permite pagamentos massivos, uma gama de serviços digitais ligados aos fluxos financeiros. Acreditamos que acesso ao dinheiro é um direto de todos. Atuar em prol da desburocrartização e para que o acesso aconteça nos mais diversos níveis, setores e classes sociais é o nosso propósito”, finaliza Taís.
Marcos Diniz diz: “no Mongeral Aegon” também partimos da possibilidade de gerar economia para o grupo. Temos uma arrecadação que chega a 1.5 bilhão de reais e precisamos fazer cobranças mensalmente. Parte da arrecadação ocorre por meio dos bancos, que cada vez mais aumenta os custos, até porque muitos nos veem como concorrentes pois também possuem seguradoras. Inicialmente buscamos ter nosso próprio meio de cobrança. Em 2014 nos debruçamos sobre meios de pagamento (na época não foi priorizado pois havia outras demandas) e acabamos indo para o caminho a seguir; viramos meio financeiro. Observamos as cooperativas de crédito, que começaram da mesma forma fazendo apenas uma operação de crédito e hoje realizam praticamente todas as operações que um banco faz. Estávamos bem assessorados e sabíamos onde chegar. No ano passado, quando saiu a portabilidade de salários para conta de pagamento, vimos o crescimento do negócio e que não podíamos ficar fora disso”.
“Como nosso leque de serviços é grande conseguimos articulação multissetorial; posso citar parcerias que GetNinjas fechou com grandes corporações a exemplo do Grupo GPA (Pão de Açúcar) e com nativas digitais como Rappi e dentro do Cielo Pay. É fato que empresas tradicionais têm empecilhos para fechar contratos e implementar mudanças de forma rápida, além de operarem com cláusulas restritivas. Para nativas digitais trabalharem junto com grandes estruturas o desafio é ter paciência e achar o melhor fit para acomodar as necessidades delas considerando que já temos a solução pronta. No momento, focamos no nosso core business, levamos ou trazemos soluções que façam sentido para o nosso modelo de negócios, como as maquininhas que, após muito estudo e parceria, disponibilizamos para os prestadores de serviços; além de facilitar os pagamentos para eles e seus clientes, trazem dados e inteligência para aprimorarmos nosso modelo de negócio. Temos muitos desafios para resolver e como líderes de mercado não temos ninguém para copiar. Articulamos com os players e parceiros internacionais, na Europa, Ásia e Estados Unidos, para entender os aprendizados deles com fases mais adiantadas de pandemia e como a gente pode se reinventar e até se antecipar ao que pode acontecer por aqui”, encerra Sandya Coelho.
Assista ao Webinar na íntegra: