O tema “Transformação Digital” tomou forma nos últimos anos de maneira similar com outras “ondas” vistas, principalmente em buscas de inovação digital: Foi proposto por grupos de pesquisa, adotado por empresas de consultoria e do mercado de tecnologia de ponta, tornou-se um jargão, transformou-se em “qualquer coisa é TD” e, por fim, eventualmente, sai do centro do palco tornando-se mais uma das frentes que estavam ativas no verão passado, deixando projetos e carreiras em dúvidas.
Muitas vezes observamos que alguns temas não duram mais que o “verão passado”, porém outros se tornam incorporados ao dia a dia, às rotinas e processos, assinalando o caminho de adoção bem-sucedida que acontece com inovações que se cristalizam. Veja-se, por exemplo, como nos cercamos de produções que outrora foram inovadoras e, posteriormente, ao escalarem, se tornando fatos de nosso contexto diário, incorporadas à vida cotidiana, perdem o brilho. Torneiras, dobradiças, elevadores, displays, óculos, medicamentos triviais, equipamentos de direção de automóveis, entre muitos, muitos outros, já foram nossas “inovações do verão”, mesmo que durando mais que a estação em termos de atratividade e, agora, perderam a atenção.
No caso da Transformação Digital, percebe-se este fato: aplicativos em smartphones seriam uma inovação? O desenho de uma nova interface “flutuante”? A inclusão de uma “call to action”? O uso de vídeos para treinamento? E quando associamos “bots” para contato e retenção de clientes? E, quando, finalmente… aquele CRM passou a responder como queríamos após muitos investimentos? Sim, a Transformação Digital, com seu contexto de difícil delimitação e até mesmo de percepção, pode atravessar este percurso, iniciado por proposições de ruptura e alcançando, simplesmente, a nossa rotina diária. E, cabe questionar: deixa de ser uma transformação por isso?
No caso da Arte tivemos oportunidade de discutir as várias tecnologias disponíveis aos artistas, como as técnicas variadas de construção de cavaletes, materiais usados em tintas e solventes para pinturas, iluminação de cenários, uso de perspectivas e outros recursos matemáticos. No caso da música, como compreender que um compositor que foi fundamental para o ensino e pesquisa da produção musical tenha ouvido uma de suas composições poucas vezes durante a vida porque, veja-se, não havia mecanismo de repetição, a não ser convocar novamente a orquestra e tocar! (Sem Youtube, Spotify, Deezer ou reprodução via mp3 ou mp4).
A associação entre os recursos digitais e a produção artística, já imensa e caracterizada por eventos “sazonais”, entre aqueles que só durarão pela temporada e outros que serão incorporados, está em seus dias de nascença ainda. Em boa parte, não se sabe para onde irá ou o que irá produzir finalmente, mas revoluciona. A Transformação Digital alcança a Arte. A Arte produz, provoca e motiva a Transformação Digital, no relacionamento bidirecional (ou multidirecional) que sempre temos buscado na abordagem desta coluna.
Claro, iniciar esta breve motivação observando o grande desafio encontrado por museus, galerias de arte, salas de concerto, teatros, espaços de mostra e exibição, entre outros, vivido durante o confinamento: os espectadores e visitantes foram impedidos, por vários meses, de participar, destruindo um relacionamento básico, clássico para sua existência. “Digitalizar o acervo”, uma decisão crítica, por vezes problemática para vários acervos, tornou-se mandatória em prazo muito curto, sem apreciações de risco comercial, estético, performático e estratégico. Estas digitalizações de imagem, vídeo, áudio e texto, num momento em que a vivência deixava de ser possível, foram impactantes.
Bibliotecas como Dribble, Krita, Devian Art e muitas outras nos mostram como a produção digital de arte visual e de áudio tornou-se não um canal alternativo, mas forma e método de expressão. Muitas vezes oriundas de áreas não privilegiadas como “games” e “cartoons”, a produção digital, com plataformas colaborativas, softwares que interagem com bancos de dados e inteligência artificial, trouxeram novas formas de expressão e construção artística, além de apresentar ao mundo novos artistas e competências. Estas mudanças podem ter sido aceleradas, ao invés de rompidas, pelos processos associados à pandemia.
Há, neste momento, mudanças que trafegam entre a ruptura do momento e aquelas que serão incorporadas, disrupções em assimilação pela comunidade artística e pelos espectadores atuais e futuros (que, com certeza, trarão o digital como suas demandas). O uso de estruturas digitais de base, tornando-se infraestrutura essencial, como o caso do Blockchain, representa uma frente importante a ser avaliada. Dificilmente encontra-se o mesmo nível de chamada para algo que é de retaguarda, de base, como o que já comentado acima para as inovações tornadas banais pelo uso. Estruturas de armazenamento em distribuição, no caso o Blockchain, e recursos disponibilizados pela sua implementação, como as criptomoedas, foram incorporadas em outras transações e tornam-se também elementos na gestão da produção e oferta da Arte. Por exemplo, uma grande biblioteca digital – como as que apresentam acervos de grandes equipamentos, como amplas galerias de arte – podem ser construídas digitalmente com o apoio de cadeias de blocos digitais, as blockchains, privadas ou públicas. Adicionalmente, oferecem aos arquitetos das soluções digitais a facilidade de implementar transações comerciais, quando desejadas, usando criptoativos como facilitadores de transações comerciais.
Outra motivação que emerge é o caso dos NFTs, os Non-Fungible Tokens. Com a proposta inicial de serem definidos e instalados com base em Blockchains, os “tokens” (identificadores digitais) são estampas ou selos únicos, de definição insubstituível e não confiável, que, associados a uma apresentação de obra – um vídeo, áudio, texto ou imagem, por exemplo – garante a autenticidade. O problema é de origem simples: No ambiente digital, como garantir que algo que estou vendo, lendo, ouvindo ou usando é autêntico e não uma cópia (que pode, devido à própria digitalização, ter sido alterada segundo interesses de terceiros)?
A aplicação dos NFTs baseia-se em princípios do direito exercidos sobre produções captadas ou feitas em ambientes e situações em que a reprodução era possível. Diante disto, normalmente, várias cópias coexistiriam, potencializado a perda da autenticidade e, consequentemente, da propriedade efetiva. Devemos pensar também que, além da propriedade de cópias digitais pretensamente autênticas de obras e produções já existentes – uma digitalização de quadro ou peça musical, por exemplo – temos as produções digitais exclusivas, como os vídeos que são exibidos aos espectadores para interação (não são finais, são dinâmicos) e a composição de histórias (mesmo os “quadrinhos”) também com interação com os leitores e clientes finais. Estes simples aspectos, entre outros que ainda se acham em absorção e desenvolvimento, caracterizam a onda da “arte digital” ainda em sua infância. Nestes contextos, a autenticidade é um grande desafio, com muitos detalhes a discutir, sendo os NFTs recursos muito aplicáveis.
Surgidos como eventos eufóricos e pirotécnicos, Blockchains e NFTs são exemplos de como os recursos digitais podem resultar noutras formas de produzir e gerenciar a arte, nos ensinando, em decorrência, a gerir nossos projetos e organizações pelo exercício da Arte – voltamos ao relacionamento bidirecional da Economia Criativa: Pensar Arte e Gestão.
Serão definitivamente incorporados ao nosso ambiente (minha opinião: já estão)? Tornar-se-ão alternativas efetivas para outros recursos e métodos (sim, há potencial amplo para isso)? Estão completamente definidas e fechadas, determinando uma visão unidirecional para aplicação (não, ainda não, temos de discutir, estudar, testar e apreciar)?
Estas e outras questões enriquecem a Arte digital, a Transformação Digital e suas criações!
Ao leitor:
Nossa proposta, nesta coluna, não é ensinar ou promover a crítica de Arte, em geral. É de provocar a reflexão sobre temas da gestão, como inovação, estratégia, marketing, transformação digital, entre outros, motivado por reflexões a partir da Arte.
Artigo escrito por George Leal Jamil. Ele é professor e consultor em temas de educação executiva. Engenheiro, MsC em Computação, Dr. em Ciência da Informação, pós-doutorados em Inteligência de Mercado e Empreendedorismo. Autor e editor de livros no Brasil e exterior. Colunista da plataforma Inovativos.