Um dilema que se apresenta sempre que discutimos Inovação e sua relação com a Estratégia: Será que ser aderente a um planejamento, obrigatoriamente inibe a criatividade, prejudicando a inovação?
Este questionamento aparece principalmente quando estou em uma avaliação de modelo inovador, um projeto de startup ou de um recurso tecnológico potencialmente radical, portanto baseado em criatividade, especialmente para os empreendedores que geraram estas propostas. Uma mera menção ao planejamento, às tarefas e métodos de organizar um empreendimento e planejar seu futuro, é recebida com desagrado ou decepção. Se até agora houve “criatividade”, teremos de recusar este sucesso para gerir a inovação para seu futuro? Tal não faz sentido, claro!
No decorrer de nossas reflexões, em colunas anteriores, falamos de mecenato, estratégia, comissionamentos e escolas de pensamento em Arte. Entre outras facetas, estas mostram uma estruturação de ideias e propostas que podem determinar como as produções artísticas chegam ao mercado, como os artistas irão viver de sua arte, bem como desenvolver seus relacionamentos – incluindo o mercado consumidor – e, enfim, suas próprias habilidades.
Interessante argumentar o que chamo, no meu entender, de fenômeno “Sinfonia número 1”. Compositores como Beethoven, Shostakovich e Sibelius, para citar aqueles já discutidos em nossas reflexões passadas, demonstram, em suas primeiras composições com produção fechada como uma Sinfonia completa, o domínio de algumas técnicas, o exercício da própria composição e o seu arranjo, a conjunção de trechos, ritmos, notas e sensações que muitas vezes irão reaparecer em suas obras mais maduras, após vários anos de “estrada”, audições para públicos diversos, exposição às críticas e análises da comunidade artística, entre outros fatores. Nestes “ensaios oficiais”, que são as primeiras peças efetivamente fechadas, os compositores exercitam seus aprendizados, iniciam a determinação de fundamentos e práticas que serão expandidas no decorrer de suas carreiras.
Também na pintura encontramos os esboços, estudos, ensaios e testes produzidos por nomes como Michelangelo, Peter Paul Rubens, Salvador Dali, Francisco de Goya, Emiliano Di Cavalcanti, entre praticamente todos os artistas. O que vemos? Em alguns casos, tentativas abandonadas, momentos de iniciativas livres, estudos (como é o caso de Goya) que são compreendidos como atos de rebeldia contra suas próprias produções contratadas, portanto, voos livres rumo a extensões dos limites exercitados em seus padrões constantes.
A essência da criatividade se mostra nestes ensaios, livremente, de maneira pretensamente irresponsável ou, mais corretamente, simplesmente sem restrições, onde o artista busca relacionar suas formações, teses e produção às tendências que admira, aos contextos não explorados, testando seus limites além do que é requisitado por seus clientes, admiradores, seguidores e contratantes – em alguns casos, importante dizer, governos, reinados, famílias de prestígio e poder e instituições, como a igreja.
O fator criatividade existe, é explorado e permanece no fundamento do exercício da arte, ao alcance e na vontade do artista.
Uma forma admissível de escapar aos contextos delimitantes lhe permitirá realizar estes testes, estes sobrevoos rumo a um futuro sem as restrições atuais, sendo criativo, refletindo sobre seu contexto e imprimindo um ritmo diverso do que muitas vezes seu caminho lhe impõe. Várias correntes da arte moderna buscaram romper com estas definições, abrindo caminho para atuações de alta expressão emocional, como as pinturas de Mark Rothko e Jackson Pollock, entre outras produções. Nestes casos, seja pela imposição de técnica perfeita, absoluta e obtida por metodologia altamente qualificada, como em Rothko, ou pela expressão emocional massiva e expressiva de Pollock, a criatividade aflora aos olhos, determinando-nos um definitivo distanciamento da figuração, pois ali, na obra, não reside a proposta de narrativa por uma imagem, como foi sustentada pela pintura durante séculos.
Buscando o relacionamento com o contexto empresarial, confrontamos novamente a pergunta inicial, que aparentemente traz uma confrontação entre o planejamento e a criatividade.
Os estudos, testes e trabalhos que tenho feito mostram que há demanda por uma negociação nas organizações, de tal forma que a inevitável produção caminhe ao lado das aberturas e ilimitações da criatividade.
Num primeiro momento, um esboço de duas estruturas, uma para produzir, entregar o contratado e gerir processos evolutivos faz-se presente, como o posicionamento estratégico e econômico de uma organização. Em paralelo, um ambiente criativo, onde a organização compreenda que há iniciativas que podem resultar em erros, ou em nada, ou ainda produzir algo fora do seu tempo e do seu lugar, para uma análise ou ação futura, talvez até mesmo por outro empreendedor ou agente do relacionamento mercadológico. Portanto, a convivência entre a conhecida “esteira”, de onde saem os produtos, onde buscamos obter a escalabilidade, a entrega com menor custo e maior rendimento, negociando valor aos clientes e buscando a rentabilidade e, em conjunto, o ambiente “lab”, o momento e espaços criativos, onde ideias por vezes paradoxais (absurdas?) são avaliadas, testadas, jogadas em tentativas para aprendizado incerto, de onde podem sair inéditas formas de posicionar e relacionar no mercado ou erros, que também nos ensinam muito a como aprimorar o que temos de perspectivas adiante.
Um relacionamento fluido, de compreensão e dinâmico entre estes dois ambientes, algo que é muito desafiador e demandante de liderança, é a resposta para um plano onde a criatividade poderá encontrar um bom lugar para exercício, junto às formas que irão tornar soluções o que foi imaginado ainda como invenções, rudimentares e provocativas, ainda longe das inovações, que, mesmo sendo mudanças de mercado, já permitem a negociação com os clientes.
Imagine-se que artistas célebres guardaram em espaços reservados manuscritos, rabiscos, esboços, partituras, telas… com o uso de técnicas e métodos que evitavam para sua produção rotineira, aprendendo, testando, aprovando e rejeitando os testes. Assim, muitos desenvolveram suas carreiras, como vemos em Salvador Dali e Wassily Kandinsky, novamente apenas exemplificando de vários casos conhecidos. A criatividade existente num contexto de exercício artístico, respeitado e orgânico ao ambiente produtivo, encontra bom lugar para prospectar novas ideias e propor inovações.
Manter o criativo e o produtivo em conjunto torna-se, enfim, um aspecto fundamental e estratégico da arte da gestão.
Ao leitor:
Nossa proposta, nesta coluna, não é ensinar ou promover a crítica de Arte, em geral. É de provocar a reflexão sobre temas da gestão, como inovação, estratégia, marketing, transformação digital, entre outros, motivado por reflexões a partir da Arte.
Artigo escrito por George Leal Jamil. Ele é professor e consultor em temas de educação executiva. Engenheiro, MsC em Computação, Dr. em Ciência da Informação, pós-doutorados em Inteligência de Mercado e Empreendedorismo. Autor e editor de livros no Brasil e exterior. Colunista da plataforma Inovativos.