Se há duas grandes demandas atuais essenciais à vida humana são alimento e energia. E o Brasil, como um dos maiores produtores agrícolas em nível mundial, pode contribuir em ambas as frentes. Tem vocação natural para contribuir com a segurança alimentar no cenário global e já figura entre os principais produtores de biocombustíveis, com baixa pegada de carbono (o planeta agradece). Possui condições favoráveis à produção de grãos, fibras e proteínas animais, não somente sob aspecto climático, mas também territorial e de know how.
Internamente, vem provando seu valor para a economia brasileira em números: em 2020, o agronegócio representou 26,6% do PIB do País e foi um dos únicos setores que cresceu durante a pandemia. Para alcançar este resultado e atender a premissa de sustentabilidade, praticada como um mantra; “fazer mais com menos” (aumentar exponencialmente a produção e lucros usando menos terra, água, defensivos, dentre outros insumos), as agtechs (ou agritechs) entram em campo como startups de soluções tecnológicas para o agronegócio e suportam toda a cadeia com soluções e produtos como marketplace, biotecnologia, inovação em métodos produtivos. automação, robotização, além de serviços de logística e transporte.
Agtechs: tecnologia em campo
Sob mediação do Presidente ABO2O / Fecomércio -SP, Vitor Magnani, o tema Campo Digital: Tecnologia, Inovação e Conectividade transformando o Agro nacional, foi debatido por Angelo Henrique Pileggi Palocci, CEO Agromercador; Francisco Jardim, co-fundador e sócio diretor SP Ventures; Mariana Caetano, head de fundo de Venture Capital de Agtechs KPTL e Guilherme Raucci, diretor de Novos Negócios e Impacto da Agrosmart. Além de remontar o contexto de desenvolvimento histórico do setor, abordar desafios, discutir perspectivas e tendências, o painel trouxe a oportunidade de a audiência conhecer um pouco mais sobre as trajetórias dos participantes que estão por trás dos fundos que impulsionam negócios no setor, bem como as especialidades das organizações que representam no contexto de digitalização aplicada ao agronegócio.
Capital do Agro
“Eu nasci praticamente embaixo de um pé de café, em Araguari, no Triângulo Mineiro”, conta Mariana Caetano, Head de um Fundo de Venture Capital de Agtechs na KPTL, uma das principais gestoras de Venture Capital do país, com mais de 60 empresas investidas no portfólio. “Nunca pensei que trabalharia com isso, mas meu primeiro estágio foi numa indústria de agroquímicos. As coisas aconteceram e fui administrar uma grande fazenda de café. Por 14 anos pude ter experiência em gestão e formação de pessoas de campo (algo que é muito desafiador), receber as tecnologias, melhorar práticas e processos agrícolas, enfrentar os desafios de secas, fazer adequações varietais, genéticas; sempre em constante contato com a Inovação. Até que resolvi me juntar à KPTL que estava montando o fundo de Agtechs, neste fundo de Venture Capital, que lidero hoje. Trago essa visão de campo com demandas dos produtores para a tecnologia. Tem sido muito divertido”, comenta.
“Nós dois vimos uma dor numa vertical do mercado. Estudei finanças no exterior e voltei ao Brasil para atuar na área financeira; tive um choque cultural no mercado de capitais brasileiro, no banco de atacado (vendo como é difícil o empreendedor brasileiro levantar capital). Tem que ter muito colateral (ativo correspondente a uma garantia sobre uma obrigação de dívida); muito caro, curto-prazo e o dinheiro não vinha com nenhum tipo de capital intangível para ajudar o empreendedor a vencer. Nos EUA conheci a indústria de Venture Capital, para mim era um pilar da economia americana de competitividade e dinamismo que não tinha aqui”, afirma o co-fundador e sócio diretor SP Ventures, Francisco Jardim, ao ver uma convergência entre sua história e a da painelista, também investidora VC.
“Quando decidi empreender no mercado financeiro, também com venture capital, comecei replicando o Playbook do Vale do Silício, generalista, early stage e tech. Logo descobri que o Vale do Silício não se replica, é preciso se adaptar. Cada vez mais, nosso Vale do Silício é o agronegócio; onde produzimos ciência de fronteira, onde o mercado é empreendedor e onde o Brasil, de fato, é um player competitivo em nível mundial e lidera vários mercados”, complementou com a visão à frente da empresa (SP Ventures) que, em parceria com Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) e Homo Ludens Research and Consulting, mapeou o número de agtechs ativas no Brasil (1.574, sendo 48% delas paulistas). A pesquisa “Radar Agtech Brasil com Radar Agtech Brasil 2020/2021” mostra que o número de startups de tecnologia para o agronegócio cresceu 40% em relação ao ano de 2019.
Avenidas da paz
Com um pitch que dimensiona a importância do agro nacional e ratifica a fala do moderador sobre o caráter historicamente inovador do setor agro, que antecede a cena agritech e já envolve, há décadas, pesquisas de ponta no campo desenvolvidas por entidades icônicas, a exemplo da Embrapa, o Sócio e diretor executivo da Agromercador, empresa especializada em marketing para o agronegócio, desenvolvedora do primeiro marketplace do agro no Brasil, Ângelo Palocci, disse: “nós que atuamos dentro da tecnologia do Agro temos muito o que aprender, tanto com o que está por vir, como também com o que já está instalado”.
“O Agro brasileiro é referência mundial hoje por conta de tudo que ele faz. Aquelas pessoas que estão lá na lavoura no dia a dia tão cedo fazem a diferença. O Brasil, seguramente, traduz hoje nas suas exportações de alimentos a paz mundial. Porque sem alimentos, o mundo não tem paz”.
O professor Palocci ensinou: “bem lembrado o legado da Embrapa. Dr. Alysson Paolinelli foi indicado (2021) ao Nobel da Paz. É uma responsabilidade monstro falar sobre o agro porque esses caras que passaram por nós e quem faz hoje agricultura têm um histórico lindo”, disse ao mencionar o ex-ministro da Agricultura, responsável por estruturar a Embrapa e atrair profissionais das universidades e dos órgãos de assistência técnica durante seu mandato. Atribui-se a ele ao indicado a virada do Brasil, de importador de alimentos em 1970, para potência mundial do agronegócio pelo fomento de políticas setoriais, criação de estruturas de governança que promoveram a expansão da revolução agrícola tropical sustentável. Estima-se que o feito possibilitou alimentar cerca de 1,2 bilhões de pessoas no mundo todo em 2016 e a liderança do projeto Biomas Tropicais (que busca estruturar planejamento estratégico deve viabilizar a produção de alimentos para mais 1,12 bilhões de pessoas até 2050). A expectativa da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) é de que o Brasil, até lá, responda por 40% da expansão da produção mundial, promovendo a paz. “Desde 14 anos, sou fanático por tecnologia mas não a de “escovar bits”; a aplicada ao negócio que gera resultados. Sou investidor de uma startup de gestão de fazendas; a Easy Farm. Com alguns especialistas do agro, fundei a Agromercador (2018); a ideia era entender a distribuição, o comportamento de compra dos produtores e conectar toda essa cadeia e fazer com que ela seja mais eficiente em todos os elos”, declarou Palocci.
Novas gerações & tecnologias: semeando disrupção no campo digital
Questionado pelo mediador sobre como se traduz a receptividade do agro às novas tecnologias, considerando que o setor já colhe bons frutos da inovação em diversas áreas da produção no campo, Guilherme Raucci, compartilha: “essa pergunta sempre aparece. Se eu fosse responder há 5 anos, diria que houve um choque com a chegada dessas novas tecnologias ao produtor. Mas, como antecipou, o Brasil já incorpora tecnologia no processo produtivo há muito tempo”.
“O produtor é curioso e há anos, seja por meio de uma semente nova, tecnologias incorporadas aos tratores, a agricultura de precisão já está inserida no dia a dia do produtor. Essa onda de digitalização se intensificou na pandemia e encontrou novas gerações assumindo a gestão das fazendas, mas ainda temos gargalos novos acessos”.
O especialista em transformação digital e sustentabilidade na agricultura à frente da startup, considerada uma das mais inovadoras do mundo pelo Fórum Econômico Mundial, complementa: “Brinco que o produtor é consumidor também. Ele usa os aplicativos na rotina para assistir streaming, fazer compras ou se comunicar. Ainda é difícil o acesso ao produtor no Brasil porque ele trata de uma diversidade de coisas; adquirir insumos, plantar e precisamos provar o valor da tecnologia; mostrar como ela transformará o negócio, que tipo de retorno terá no curto prazo para que seja atrativa. Adaptamos o discurso para chegar nesse produtor com a proposta de valor mais direta e o retorno esperado; números. Na parte mais abstrata demoramos um pouco mais de tempo para evoluir. Ainda não consigo gerar um modelo com inteligência artificial muito avançada. Não há dados ainda para isso. Cada safra no agro é de um jeito. Mas vejo de forma positiva, a transformação vindo acelerada”.
Digitalização imposta porteira adentro
“Nesse sentido todos vão concordar que a pandemia trouxe um salto de digitalização dos mecanismos para escalar venda e distribuição da tecnologia no campo (onde havia uma resistência grande) e com os cancelamentos dos eventos presenciais tradicionais do setor, como Agrishow, por exemplo, o marketing digital (inbound e outbound), entraram porteira adentro de forma forçada”, relata Jardim.
“Faço uma leitura semelhante, mas quero fazer algumas ressalvas. Primeiro, o agronegócio brasileiro é um mercado extremamente heterogêneo: uma propriedade de 600 hectares para o café é grande, ao passo que uma de 2.500 hectares para soja é pequena. Tais nuances influenciam a adoção de tecnologia. O agronegócio começou a ser estudado pela academia em 2000. No entanto, saiu agora, em 2021, um estudo feito pela McKinsey, que mostra que o produtor adota tecnologia, quem não adota são as indústrias. Outro aspecto é a cadeia. O agronegócio separa hoje a porteira para dentro da porteira para fora em termos de adoção de tecnologia. Há sim os filhos dos administradores chegando com sangue novo e experiência totalmente nova, mas há produtores das antigas se ambientando com o novo. Além disso, há no agro o que chamo de difusão por inveja; quando um produtor mostra a curva de adoção de tecnologia e que está ganhando dinheiro, outros administradores querem a ferramenta e o resultado também. Nós que temos o desafio de levar tecnologia para o Agro nos preocupamos em gerar experiência positiva e devemos usar uma linguagem simples; que mostre como fazer mais com menos”, argumenta Palocci.
Combinando frentes e conhecimento: otimização de recursos
A investidora Caetano recortou da vivência no campo: “quando falamos que o agronegócio é novo, de fato, como gestão profissional é bem recente. Vou tocar em um ponto importante, sob o prisma do café, por exemplo: a geada sempre foi uma grande preocupação, mas a seca vem atrapalhando o negócio mais do que a geada há bastante tempo. Porém, a academia não tinha estudos com muitos anos para comprovar o que se evidencia na prática. A tecnologia das agtechs associa-se à academia e desenvolvem rápidos resultados”.
“O produtor quer comprar menos insumos e ter resultados, mais dinheiro no bolso. Devemos pensar a aceleração não só pela digitalização, mas pela inteligência que agtechs promovem”.
O mediador emenda: “temos que ver tudo sob a lente ESG (environmental, social and governance)“, referindo-se à sigla Social, Ambiental e Governança, pois há tensão crescente do mercado financeiro sobre sustentabilidade e otimização de recursos é da natureza agtech.
A pergunta de um bilhão de dólares
Em resposta à provocação do moderador: “por que ainda não temos unicórnio agro sendo o setor um dos principais motores da economia nacional?”, Caetano, diz: “em breve devemos começar a ver os primeiros unicórnios. Acho que o mercado entendeu que um aplicativo não é solução para todos os produtores de forma escalável a ponto de atingir a valoração de unicórnio (US$ 1 bilhão). O agro é um universo, há microclimas e perfis diferentes de produtores que requerem adaptações para os respectivos modelos. O agrupamento de inteligências para trazer soluções mais completas aumenta a chance das empresas e isso deve começar a acontecer agora”.
Concordando com a investidora Caetano e aprofundando a investigação, Magnani, pergunta: “será que ainda não temos unicórnio agro em virtude da não introdução de 5G?”.
“O agro tem todas as características macro para produzir vários unicórnios. Mas falta infraestrutura. Para construir e exponencializar esse negócio é preciso conectividade e penetração, além de alfabetização digital. Acredito que estamos há dois ou três anos de ter alguns unicórnios no agro”.
Palocci opina: “estamos no caminho para isso sim, mas diria que temos que ser água e não pedra. Se formos pedra vamos ficar em choque; há muitos interesses conflitivos, principalmente na distribuição. Como água, contornamos obstáculos. O Agro brasileiro ainda é bastante desconectado. Há iniciativa aqui trabalhando para conectar. Talvez, não tenhamos unicórnios, inclusive, porque grandes indústrias não deixam. Há multinacionais que absorvem potenciais unicórnios e travam o processo”.
Amarrando a questão, Raucci conclui: “vocês falaram de vários pontos, mas tem os bastidores; talento e educação para trabalhar nas agtechs. A dinâmica está muito acelerada e há uma grande busca por talentos no Agro. É desafiador para Agtechs conseguir competir com ticket de outras empresas e reter talentos e educar um mercado. Nos primeiros anos, a Agrosmart precisou “abrir mato mesmo”. Dá para fazer. Temos um plano ambicioso de visão colaborativa e resolução dos problemas. Não somos uma empresa fechada em silos. Está tudo em APIs. Nossa candidatura para unicórnio está em jogo”. Em considerações finais, o tom geral foi de abertura ao diálogo para construção conjunta de mensagem simplificada, que inclua a voz relevante do produtor em debate aprofundado sobre a cena agro, a começar por dar visibilidade às conquistas já feitas e pulverizadas em meio aos efervescentes acontecimentos. no campo fértil digital.
Assista ao painel na íntegra abaixo ou escute o podcast completo aqui.