Por trás do fascínio com ferramentas como ChatGPT, carros autônomos e assistentes virtuais, há uma realidade preocupante: a adoção da inteligência artificial (IA) no mundo, inclusive no Brasil, ainda é marcada por profundas desigualdades, risco de exclusão e concentração de poder. Embora a tecnologia avance em grandes empresas e centros urbanos, a maior parte da população brasileira segue à margem dessa revolução.
Na Febraban Tech 2025, o tema foi amplamente discutido em diversos painéis, revelando não apenas o potencial da IA, mas também seus limites sociais, econômicos e éticos.
Inclusão digital ainda é privilégio
Em um dos debates, Glauco Arbix, professor titular de Sociologia e coordenador da área de Humanidades do Center for Artificial Intelligence (USP-Fapesp-IBM) e do Observatório da Inovação do Instituto de Estudos Avançados, destacou que a IA é uma das maiores invenções da humanidade, mas ainda com poucas aplicações verdadeiramente relevantes para a sociedade.

“É a tecnologia mais poderosa que a humanidade já criou. Com ela, podemos superar problemas históricos, mas precisamos ver onde o calo aperta com a IA. Como o calo aperta no impacto no mercado de trabalho, na desigualdade entre países e no sistema educacional? Que ataquemos essas questões. Porém, é inegável que ela é promissora”, afirma.
Um dos entraves mais evidentes é a exclusão digital. Segundo dados do IBGE, mais de 33 milhões de brasileiros ainda não têm acesso adequado à internet. Em áreas rurais, esse índice ultrapassa 36% dos domicílios (Cetic.br, TIC Domicílios 2023). A exclusão não se limita à conectividade: 56% das escolas públicas afirmam que a internet disponível não é suficiente para atividades digitais mais avançadas (TIC Educação, 2022).

Sem acesso básico à tecnologia, milhões de estudantes e trabalhadores brasileiros simplesmente não conseguem participar da economia digital – o que inclui desde treinamentos com IA até o uso de plataformas automatizadas de atendimento, saúde ou governo.
Para Alexandre Del Rey, fundador e conselheiro da I2AI (Associação Internacional de Inteligência Artificial), membro do Comitê Gestor da Estratégia Brasileira de IA (MCTI) e diretor-adjunto de Tecnologia da Anefac, há ainda uma discussão que vai além da infraestrutura. Segundo ele, precisamos discutir e usar a tecnologia para a resolução de problemas reais – algo que poderíamos ter feito com outras tecnologias e não o fizemos.
“O que me preocupa é o alinhamento para chegar a um acordo sobre o que queremos com a tecnologia. A IA pode resolver problemas sociais importantes, mas também poderíamos ter resolvido esses mesmos problemas com tecnologias anteriores, mas escolhemos não fazê-lo.”, afirma Del Rey.
O custo da implementação da tecnologia
Outro desafio central está no custo de implementação da IA. Grandes empresas possuem os aportes necessários para a implementação da tecnologia, inclusive já estariam em estágios avançados de uso. O problema é quando o assunto são as pequenas e médias empresas. Embora o tema tenha avançado entre grandes organizações, a disparidade ainda é marcante.
Estudo da FGVcia mostra que enquanto 53% das empresas com faturamento acima de R$ 500 milhões já têm iniciativas estruturadas de IA, esse número cai para apenas 12% entre as pequenas e médias. Além disso, o Brasil investe menos de 0,5% do PIB em pesquisa e desenvolvimento em IA — um patamar ainda distante de países como China e Estados Unidos. Na prática, o país avança, mas com passos desiguais e concentrados em bolsões tecnológicos.
Gabriela Tourinho, diretora e head de Inteligência Artificial do BTG Pactual, ressalta que os custos precisam ser compreendidos como investimento estratégico.
“Sempre precisamos considerar o custo adicional de adoção, assim como foi com a internet e até, pensando ainda mais longe, como ocorreu com a eletricidade. Precisamos considerar o custo de implementação, porém é inegável que isso nos levará a outro ‘boom’ de patamar de produtividade.”, afirma Tourinho.
Falta de regulação e riscos éticos

Outro desafio é o regulatório. O país ainda não possui uma legislação específica sobre inteligência artificial. Por ora, o que existe é uma comissão especial que analisa o projeto de Lei 2338/2023, que busca estabelecer um marco legal para o tema, segue em tramitação no Senado. Para Rafael Zanatta, Codiretor da Data Privacy Brasil, o relatório deverá ser apresentado até o fim do ano. “No entanto, precisamos que a sociedade participe do debate. Mande e-mail para o seu parlamentar e cobre uma posição dele sobre o assunto. É importante a participação de todos”, afirmou.
Enquanto isso, muitos brasileiros sequer desconfiam que falam com IAs diariamente. Pesquisas do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS-Rio) mostram que 58% dos brasileiros não sabem que já são impactados por decisões tomadas por algoritmos — o que inclui desde aprovação de crédito até triagem de currículos. Sem regulação, a IA pode reforçar discriminações raciais, de gênero ou sociais, além de violar direitos fundamentais como privacidade, explicabilidade e consentimento.
Diversidade ainda é exceção
Outro desafio estrutural é a falta de diversidade nas equipes que desenvolvem e operam sistemas de IA. Segundo dados da Pretalab (2022), apenas 14% dos profissionais de tecnologia no país são mulheres negras ou pardas. Esse déficit de representatividade tem impacto direto na forma como os algoritmos são treinados e aplicados.
Além disso, as bases de dados usadas para treinar modelos de IA geralmente não representam adequadamente a diversidade cultural, racial e linguística do Brasil, o que compromete a equidade dos resultados gerados.