Em meados dos anos 2000, o questionamento do tailandês Yu-Kai Chou, na época apenas um jovem apaixonado por videogames, mudou a forma como o mundo vê a gamificação voltada aos negócios e a sua própria trajetória profissional. Após meses se dedicando para aumentar o nível dos personagens de um jogo, ele percebeu que todo aquele empenho não gerava nada de concreto e se perguntou como os jogos poderiam ter sentido e, ao mesmo tempo, deixar a vida divertida. Com isso, criou o conceito Lifestyle Gamification e, depois, a Future Delivery, empresa que atua na transformação de produtos e tarefas produtivas em jogos. Apesar de ser ignorado por algum tempo pela maior parte das companhias, que não acreditavam no poder dos games, Yu-Kai seguiu com o mesmo entusiasmo e garra com que jogava. Em um jogo, por exemplo, a meta era sempre dar o melhor e, para isso, munia-se de informações e fazia planilhas para traçar a melhor estratégia.
Foi esse perfil que o levou ao desenvolvimento do Framework Octalysis, abordagem para projetar experiências envolventes, criada em 2010, quando o termo gamificação começou a despontar. Atualmente, ele está na vanguarda do cruzamento entre psicologia, tecnologia e estratégia de negócios. Conhecido como o “pai da gamificação” pelos quatro cantos do mundo, já impactou mais de 1,5 bilhão de pessoas com suas ideias e chamou a atenção de organizações como Uber, Volkswagen e eBay, além de ministrar palestras em renomadas instituições de ensino, como Harvard e Stanford (veja mais no quadro “Quem é Yu-Kai Chou”).
Em entrevista exclusiva a INOVATIVOS, Yu-Kai explica como a gamificação transformou a maneira de interagir entre empresas e seus clientes e funcionários, o futuro da área e o papel da inteligência artificial generativa nessa evolução.
INOVATIVOS: O que exatamente está por trás do Octalysis?
Yu-kai Chou: Octalysis: é um framework abrangente para analisar e projetar experiências envolventes por meio de uma lente centrada nas pessoas. É uma combinação das palavras “octagon” (octógono) e “analysis” (análise). A ideia se baseia na compreensão de que nós, como seres humanos, não somos impulsionados apenas pela função e pela lógica. Nossas decisões e motivações também são influenciadas por emoções, fatores sociais e gatilhos irracionais. Por isso, ele é moldado como um octógono, representando 8 Core Drives (Motivações Centrais) que nos estimulam em tudo o que fazemos: significado, realização, capacitação, propriedade, influência social, escassez, imprevisibilidade e evitação. Ao entendê-los e implementá-los no design de produtos ou serviços, as empresas podem criar experiências mais envolventes e eficazes para clientes e funcionários. Os efeitos são decorrentes de qual motivação está em ação. Até agora, o Framework Octalysis foi usado para projetar experiências para mais de 1,5 bilhão de usuários e é referenciado em cerca de 2.400 teses de doutorado e revistas acadêmicas em todo o mundo.
INOVATIVOS: Desde que você iniciou nesse caminho, lá em 2003, o que vê de mudança no mundo dos negócios? Acredita que as empresas já entenderam bem a ideia e o poder da gamificação?
Yu-kai Chou: O conceito de gamificação passou por uma significativa evolução. No início, muitas empresas o viam apenas como uma simples adição de mecânicas de jogo aos seus serviços, como pontos, distintivos ou classificações – o que está errado. No entanto, à medida que o conceito amadureceu, percebo que as companhias estão começando a entender que envolve alavancar os princípios psicológicos que tornam os jogos envolventes e aplicá-los a contextos não relacionados a games. Perceberam, ainda, que a gamificação eficaz envolve compreender as motivações de seus usuários e projetar experiências que possam envolvê-los e satisfazê-los. Há cada vez mais negócios criando experiências ricas e imersivas que impulsionam tanto o envolvimento do cliente quanto os resultados comerciais. O futuro é promissor, mas ainda há muito trabalho a ser feito na melhoria e implementação dessas práticas.
INOVATIVOS: Qual é o melhor exemplo de gamificação na relação entre empresas e clientes?
Yu-kai Chou: O programa de recompensas da Starbucks, que aplica perfeitamente os princípios da gamificação para incentivar a fidelidade do cliente. Os usuários ganham “estrelas” a cada compra, que podem ser resgatadas por bebidas ou alimentos gratuitos. Mas não se trata apenas de ganhar estrelas – o programa também incorpora elementos como níveis graduais, personalização e bônus inesperados que alavancam vários dos Core Drives dentro do Framework Octalysis. Os clientes podem, por exemplo, ganhar o dobro de estrelas em determinados dias (escassez e imprevisibilidade) ou uma recompensa especial no aniversário (significado e propriedade). Sua incursão no Starbucks Odyssey também é um estudo de caso interessante em direção ao futuro da Web 3 gamificada.
INOVATIVOS: Estamos vivendo agora a euforia da inteligência artificial generativa. Como essa tecnologia se encaixa na gamificação?
Yu-kai Chou: A IA generativa e a gamificação são dois campos empolgantes e com muito potencial quando usados em conjunto. A IA generativa pode fornecer conteúdo dinâmico e personalizado para os usuários, aprimorando a sensação de singularidade e envolvimento em um sistema gamificado. Imagine uma plataforma de aprendizado que usa a tecnologia para criar questionários e desafios personalizados com base no desempenho e estilo de aprendizado de uma pessoa, direcionando-as no nível certo para mantê-las envolvidas e motivadas. O professor de IA do Duolingo, que ajusta as dificuldades com base no ritmo de aprendizado de cada um, é um passo nessa direção. E vou além: a IA poderia, até, determinar tendências dentro desses 8 Core Drives e decidir quanta escassez e Imprevisibilidade o usuário deseja, e o que realmente faz ele sentir que há um significado e um propósito maiores em suas atividades.
INOVATIVOS: O que está por vir nos próximos anos quando falamos em gamificação?
Yu-kai Chou: Prevejo muita novidade num futuro próximo. Em primeiro lugar, haverá uma integração mais profunda de IA e análise de dados na gamificação para fornecer experiências altamente personalizadas. Em segundo, as empresas aplicarão o uso da gamificação internamente, aprimorando a motivação e a produtividade dos funcionários. Veremos também maior fusão entre os mundos virtual e físico, com tecnologias como realidade virtual e aumentada desempenhando um papel mais significativo em experiências gamificadas.
Se você utilizar a gamificação agora, terá vantagem competitiva em relação a outros players da indústria. Em cinco anos, no entanto, as empresas terão de usá-la apenas para não ficarem para trás, já que funcionários e clientes desejarão se envolver com experiências centradas no ser humano, em vez de interagir com uma empresa que é monótona e focada apenas na função. Nem preciso dizer que é muito melhor fazer algo quando isso oferece
uma vantagem do que apenas para sobreviver.
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